O mundo contemporâneo nasce sob o estigma da crise. Crise da verdade, da ciência, da justiça, da política, da religião, da arte. Todos nós vivemos há muito tempo sob a égide dessa experiência e viemos desenvolvendo concomitantemente nossas estratégias próprias para lidar com ela. A absorção cada vez mais intensa em modos impessoais de existência, o hedonismo mediano que nos arrasta a todos para o interior do espaço de uma grande festa global, o esvaziamento das ideias mais corrosivas com um simples olhar de desdém, a subjugação cada vez mais intensa do homem ao tempo cotidiano em seu ritmo frenético e avassalador e a transformação de tudo o que é grande em peça de um gigantesco circuito cultural marcado por uma ininterrupta febre de renovação não são senão alguns sintomas inconfundíveis de nossa situação atual. É dessa situação que partimos, é em seu âmbito que precisamos incessantemente nos movimentar. Partir de uma determinada situação, porém, não significa necessariamente tornar essa situação objeto de uma abordagem temática. Como ainda veremos de maneira detida no decorrer do presente texto, um horizonte originário de realização sempre se mostra tanto mais propriamente, quanto mais estivermos em condições de seguir a rede remissiva presente naquilo que se mostra em seu campo de jogo e quanto menos tentarmos uma análise frontal de suas determinações estruturais. Exatamente por isto, o objetivo primordial de nosso trabalho não é apresentar mais uma concepção acerca da decadência ou das possibilidades positivas do mundo contemporâneo, acerca do niilismo ou da vitalidade cultural da época atual, acerca das potencialidades ou do acirramento das dimensões de controle no momento que é o nosso. Ao contrário, o que procuraremos fazer é pensar uma possibilidade oriunda da própria crise do mundo contemporâneo, uma possibilidade que se encontra plasmada em um fenômeno que ganha voz no interior do próprio horizonte da crise. A possibilidade de uma experiência de tempo completamente paradoxal para a tradição e extremamente importante para um redimensionamento possível da filosofia, do pensamento em todas as suas dimensões: a experiência de uma eternidade sem duração, de uma eternidade que não se mostra como o âmbito do sem tempo, de uma eternidade frágil. Mas por que essa possibilidade em específico? O que nos faz articular a experiência de crise do mundo contemporâneo com o problema da temporalidade? Em que medida a arte, anunciada no subtítulo desse livro, possui uma relação originária com o problema da temporalidade?
Iniciamos o texto com a menção a uma crise que constitui essencialmente o mundo contemporâneo. Com essa menção, não estávamos pensando o mundo como um espaço previamente dado, oriundo de um processo histórico materialmente descritível, que pode ser analisado em suas determinações estruturais e considerado a partir de um conjunto de categorias essenciais. Mundo é aqui um termo que suprime por completo a própria possibilidade de se falar com base em tais determinações e categorias. Em verdade, o mundo é sempre por um lado um horizonte finito e temporal, a partir do qual apenas são possíveis os nossos comportamentos em geral e em meio ao qual os entes se mostram como os entes que são. Ele é uma rede remissiva complexa que apresenta a cada vez, em cada época, em cada horizonte específico, medidas que sempre trazem consigo possibilidades particulares de experiência. Essas medidas, por outro lado, possuem uma natureza que torna desde o princípio inviável algo como uma equiparação entre o mundo e aquilo que pode ser descrito a partir do mundo. Análises materiais de nível conjuntural permanecem incessantemente presas a um horizonte interpretativo que elas nunca colocam, nem podem colocar em questão. Uma articulação com o mundo depende, por isto, de uma experiência bastante peculiar que possa abrir o espaço para um despontar explícito do mundo em sua determinação fundamental. Ao falarmos de um mundo contemporâneo, portanto, já estávamos pensando em função de uma determinação temporal do mundo. Mundo é constitutivamente tempo. No momento em que nos colocamos hoje diante de uma paisagem exuberante e a sorvemos com olhares embasbacados, em que nos deixamos levar pelo ritmo agora frenético dos afazeres cotidianos, em que acompanhamos atentos os lances plásticos de uma partida decisiva de futebol, é o nosso mundo que se encontra incessantemente ao nosso lado, à nossa volta, aos nossos pés, sobre nossas cabeças. O nosso mundo no horizonte temporal que ele é. Se conseguíssemos suprimir por um único instante que fosse a presença temporal do mundo, nada mais apareceria e não seria mais possível falar nem mesmo sobre uma indiferença radical em relação a todas as coisas. A presença temporal do mundo, porém, é sempre uma presença temporalmente condicionada, fruto de certa tradição, de um certo processo de sedimentação de percursos do passado, assim como sempre aberta em última instância para novas possibilidades de futuro. Assim, a crítica a análises materiais do mundo não equivale de modo algum a uma suspensão da temporalidade intrínseca ao mundo e a uma suposição de algo assim como um horizonte ontológico indeterminado e indeterminável. Mundo envolve sempre um acontecimento temporal no qual entram incessantemente em jogo as diversas dimensões do tempo. Há, em outras palavras, em todas as nossas realizações existenciais um lastro de mundaneidade que possui em seu caráter mais próprio uma relação originária com o tempo. Nós não precisamos fazer nada para alcançar uma tal ligação originária com o mundo, pois já sempre nos encontramos em meio ao acontecimento dessa ligação. Nós nunca carecemos de um tempo específico para o nosso existir, porque esse existir é temporal no fundo de seu elemento mais próprio. Bem, mas se não há qualquer necessidade de buscarmos uma ligação ulterior com o mundo e com o tempo, se nunca precisamos nos tornar contemporâneos de nós mesmos, pois sempre já o somos inexoravelmente, isso não significa que essa ligação já se acha desde o princípio explícita em nossa experiência cotidiana. Ao contrário, como exercício filosófico, a descoberta da temporalidade do nosso tempo e da mundaneidade do nosso mundo envolve sempre uma experiência de ruptura, de quebra, de dissonância. É o que nos diz Martin Heidegger de maneira paradigmática em uma passagem de sua Introdução à filosofia: “Por certo, quanto mais seriamente nos empenhamos pelo filosofar, tanto mais se evidencia que o filosofar, apesar de acontecer na essência do ser-aí, sim, exatamente porque acontece aí e somente aí, carece de uma libertação junto à qual o ser-aí precisa usar de violência contra si mesmo. Toda violência, porém, encerra dor em si” . Ora, mas exatamente essa situação nos impele a pensar em alguma instância que possa propiciar tal experiência de violência, que rompa com a tendência de obscurecimento do horizonte mundano e temporal no qual desde o princípio nos movimentamos. Para tanto, porém, é preciso antes de mais nada especificar um pouco mais o que está em questão com a dita “violência” necessária para pensar a mundaneidade do mundo contemporâneo em sua base temporal específica.
Marco Antonio Casanova